Daniel Lemahieu
Nasceu em Paris, em 1959. Atriz, romancista e dramaturga francesa. A sua primeira peça, Conversations après un enterrement [Conversas Depois de um Enterro], é escrita e estreada em 1987 (Théâtre Paris-Villette). Segue-se La Traversée de l’hiver [A Travessia do Inverno], escrita em 1989 para o Théâtre National de la Colline. Art [Arte] abre-lhe a porta do sucesso. Representada em mais de 40 países, a peça disseca as falsas aparências da amizade, usando como pretexto da disputa uma tela pintada de branco (Comédie des Champs-Elysées, 1994). L’Homme du hasard [O Homem Inesperado] (Théâtre de l’Atelier, 1995) passa-se no interior de uma cabine de comboio: entre um escritor célebre cheio de azedume e uma mulher que se vê diante do seu autor preferido, desencadeia-se uma sucessão de fluxos interiores autónomos, “cada um em si mesmo”. O diálogo irrompe no último momento. Trois versions de la vie [Três Versões da Vida] (Burgtheater, 2000) e Une pièce espagnole [Uma Peça Espanhola] (Théâtre de la Madeleine, 2004) entrelaçam a questão do tempo e aquele jogo de verdadeiro e falso que é a existência, de que só mais tarde nos lembramos. Dans la luge de Schopenhauer [No Trenó de Schopenhauer] (Théâtre Ouvert, 2006) exibe quatro personagens que confessam alternadamente as suas obsessões enquanto trocam enunciados filosóficos em segunda mão sobre o estado do mundo e dos seres. Le Dieu du carnage [O Deus da Carnificina] (Zurique, 2006) coloca em cena dois casais que discutem numa sala de visitas da burguesia, o que é representativo dos lugares do discurso da dramaturga. Atacam-se mutuamente e desagregam-se por causa dos seus filhos, um dos quais feriu ligeiramente o outro na sequência de uma zanga.
Este teatro de imbricação de micro-situações primeiro banais e depois explosivas, de espaços e de tempos heterogêneos, articula múltiplos níveis de consciência e de percepção da realidade, no interior dos quais surgem monólogos, acidentes, quebras, rupturas de sentidos e de sensações sublimados por cómicas ironias. Reza gere os tropismos, as elipses: uma troca de frases comuns, uma palavra desastrada e anuncia-se a calamidade, que avança, inelutável, por entre deslizes progressivos de sentimentos, da simples constatação ao desencadeamento de paixões num espaço fechado que se torna cada vez mais denso, explorado com pequenos toques, suaves mas ferozes. Estes confrontos não excluem o riso, porque cada qual acaba por se reconhecer nas suas fraquezas, excessos, defeitos, não-ditos e frustrações mortificadas. As personagens, frequentemente imersas numa crise de nervos, exprimem o desejo irreprimível de chegar a vias de fato, mas detêm-se a tempo porque são, no fundo, cobardes e perversas. Essa denunciada cobardia, que é também a nossa, comove-nos graças à densidade dos silêncios que pontuam as nossas pequenas comédias, sérias e frívolas, atravessadas por patifarias e pequenos nadas.
In Michel Corvin, dir. – Dictionnaire Encyclopédique du Théâtre à Travers le Monde. Paris: Bordas, cop. 2008. p. 1166.
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“Escrevo um teatro de nervos”
Entrevista com Yasmina Reza.
Por Jérôme Garcin.*
Mesmo que a política não seja o assunto da sua peça, O Deus da Carnificina, ela ilustra perfeitamente o tema central: o ser humano civilizado não passa de um selvagem que se controla, e basta uma coisinha de nada para que se passe da falsa urbanidade à verdadeira barbárie.
Não acho que o ser humano seja pacífico. Penso que não se evoluiu desde a idade da pedra e que o verniz social que nos protege da selvajaria é inquietantemente ténue, está sempre prestes a estalar. Ponha quatro pessoas dentro de um elevador que se avaria de repente e elas ficam doidas. Basta haver pânico e toda a gente se espezinha. Observe crianças a brincar na areia: não têm alternativa, batem umas nas outras para ficarem com um objeto na mão. Eu escrevo um teatro de nervos, porque são os nervos que nos comandam. As personagens que componho desde sempre são pessoas bem-educadas que pretendem manter a compostura. Mas como também são muito impulsivas, não conseguem manter as regras que impuseram a si próprias. Vão derrapar, mas sempre contra a sua vontade, mesmo quando estão em plena derrapagem. É precisamente esta luta da pessoa contra si própria que me interessa.
De onde veio a ideia para esta peça?
Quando o meu filho tinha 12 anos, contou-me que um dos amigos tinha levado com um pau de um colega da turma e este lhe tinha partido um dente. Encontrei um dia, à saída da escola, a mãe da vítima e perguntei-lhe se o filho estava melhor. E ela respondeu-me: “Acredita que deixámos uma mensagem no atendedor de chamadas dos pais do rapaz que agrediu o nosso filho e eles nem sequer nos responderam?” Senti que tinha ali um tema ideal para mim.
É um retrato terrível de um grupo de pais de alunos que, como diz Ana na peça, “tomam a defesa dos filhos de uma maneira infantil”.
Os pais dos alunos são um género de pessoas um pouco aterrorizador. Nas reuniões de pais, alguns interessam-se com uma seriedade espantosa pela organização da vida comunitária dos filhos.
Avançando para o assunto, os dois casais da peça são mais de esquerda e andam com a boa consciência pendurada ao ombro.
Não situei as minhas personagens e não estou assim tão certa de que a boa consciência seja um apanágio do pensamento de esquerda. Mas é verdade que a esquerda veste as roupagens do bem melhor que a direita. Um handicap que a direita nunca soube superar. Na peça, as quatro personagens aparentam, no início, aquilo a que eu chamaria uma boa vontade de civilização. Como eu faria no lugar delas. Porque eu não escrevo para estigmatizar. Pelo contrário. Não me excluo para julgar. Nunca olho para as personagens como moralista nem como entomologista. Ou, se o faço, é a partir de dentro. Neste caso, sou as quatro personagens ao mesmo tempo, compreendo-as intimamente, e até poderia dizer que há, na minha maneira de as representar, uma fragmentação pessoal.
No entanto, na peça, não é tanto a personagem de Verónica, a intelectual e mãe da vítima, mas mais a de Alain, o advogado e pai do agressor, sempre colado ao telemóvel, que parece aproximar-se mais de si, o mesmo Alain que acredita no “deus da matança, o único que governa, sem limites, desde a noite dos tempos…”
Não me agrada a ideia de que uma personagem possa ser um porta-voz. Aliás, o pensamento, ou seja, as ideias sobre o mundo, as opiniões, são quase sempre o lado menos interessante das pessoas. Sim, há certas frases de Alan que eu poderia assumir como minhas naquela situação. Ele é o único que tenta relativizar o que aconteceu, manter a cabeça fria. Quando ele diz a Verônica: “Todos nós gostaríamos de acreditar na possibilidade de as coisas melhorarem. Mas será que isso existe?” ou “Você escreve um livro sobre o Darfour para se salvar a si própria”, são pensamentos que também poderiam ser meus. Mas também há nas outras personagens reacções que me são próximas, e sentimentos também. Mesmo em Verônica, que parece estar mais distante.
Quando começou a escrever a peça, já sabia que ia terminar com uma matança?
Eu sabia duas coisas: que se iria desenrolar em tempo real e que iria terminar com uma espécie de matança. Claro que não sabia como esse desenvolvimento iria ser ao certo. A partir de um determinado momento, as personagens têm as suas próprias leis, não as podemos arrastar para onde queremos. Não penso que volte a escrever uma peça que se passe em tempo real. Os constrangimentos do tempo real são assustadores. Somos obrigados a manter uma tensão que não seja artificial, conduzimos um equipamento que não quer saber para nada das leis da dramaturgia, deixa tão pouca respiração, é tão difícil, tão extenuante como querer parar cavalos embalados num triplo galope!
* Excerto de uma entrevista originalmente publicada na edição de 14 de Fevereiro de 2008 da revista Le Nouvel Observateur
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“Um humor que não conhece tabus”
Entrevista com Yasmina Reza.
Por Marie-Françoise Lectére e Christine Dössel.*
Foi atriz antes de começar a escrever. O fato de ter sido atriz influencia a sua escrita?
Absolutamente. Eu escrevo para actores. Sei que eles fazem milagres com uma única palavra.
Dá-lhes belos papéis para eles representarem?
Sim, mas esses belos papéis também podem ser feitos de pausas ou de uma só palavra colocada de maneira eficaz. As minhas peças são escritas para bons atores, é por isso que dou grande valor à escolha dos teatros certos e de elencos de primeira categoria. Isso tem a ver com o ritmo subtil, a musicalidade da linguagem e o humor particular dos meus textos. Se não se consegue captar isso com precisão, as peças tornam-se demasiado leves e perdem o seu significado.
Será que o seu humor é um humor tipicamente judeu?
Acho que sim. Os judeus são capazes de rir de tudo, mesmo de catástrofes. É um humor que não conhece tabus.
Talvez seja por determinados espetáculos serem maus que as suas peças sejam desqualificadas por alguns críticos como fazendo parte de um boulevard fino.
Não me importo nada com isso. Escrevo o que quero e como quero.
O título O Deus da Carnificina não soa a boulevard leve. Não há nada que escape à matança, nem as mulheres, nem os homens, nem os casais, nem os bem intencionados, nem os homens de negócios, nem as crianças.
Sobre as crianças não digo praticamente nada, embora sejam elas que sirvam de pretexto. Tal como em Três Versões da Vida, quis mostrar apenas que as crianças não são um elemento pacificador: não dão consistência ao casamento, não unem a família, trazem consigo a discórdia.
Encontra-se a si própria nas suas personagens?
Há com certeza alguma coisa de mim em todas elas. E eu gosto de todas, mesmo da personagem que diz que o deus da matança rege sem tréguas desde o princípio dos tempos.
A sua visão do mundo é muito sombria.
…Mas eu procuro a alegria.
É feliz?
Escreva: “Ela riu com gosto!”
* Excerto de uma entrevista originalmente publicada na edição de 28 de Setembro de 2007 no jornal Berliner Zeitung.
In O Deus da Matança: [Programa]. Lisboa: Teatro Aberto, 2009. [Trad. Vera San Payo de Lemos.] p. 17-18.
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--Fonte: Blog Agenda do Porto
--Fonte: Blog Agenda do Porto