VEJA Rio
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QUARTA-FEIRA, 1 DE SETEMBRO DE 2010
Teatro/CRÍTICA
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Com a lama até o pescoço
Lionel Fischer
Dois garotos de onze anos, que estudam na mesma escola, um dia resolvem ir às vias de fato. Um deles leva a pior e tem dois dentes quebrados, fruto de uma paulada. Em função do incidente, os responsáveis pelos garotos se encontram na casa do agredido para tentar encontrar alguma forma de reparação. Aos poucos, porém, o foco muda para a vida pessoal e profissional dos casais, e a convencional polidez do início cede lugar a embates cuja virulência por muito pouco não descamba para agressões físicas.
Eis, em resumo, o enredo de "Deus da carnificina", de Yasmina Reza, que entrou ontem em cartaz no Teatro Maison de France. Emílio de Mello assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Orã Figueiredo (Michel Hortiz) e Deborah Evelyn (Verônica, sua esposa) - pais do menino agredido - e Alan Reis (Paulo Betti) e Julia Lemmertz (Annette).
Num texto inserido no programa, a autora diz o seguinte: "Não acredito que o ser humano seja pacífico. Penso que ele não evolui desde a Idade da Pedra e que o verniz social que nos protege da selvageria é inquietantemente suave e sempre a ponto de estourar. Eu escrevo um teatro de tensão, porque as
tensões nos governam. Meus personagens são pessoas educadas que pretendem manter a compostura. Mas como são também impulsivos, não conseguem manter as regras que impuseram a si mesmos. E é precisamente essa lutra contra si mesmo que me interessa. Minhas obras sempre foram consideradas comédias mas penso que são tragédias divertidas. Mas tragédias, ao fim..."
Diante do acima exposto, só me resta concordar inteiramente com a lúcida visão da autora sobre sua obra. Todos sabemos que uma salutar convivência em sociedade implica, não raro, na representação de papéis que não correspondem exatamente aos nossos "personagens". No entanto, dependendo das circunstâncias, todas as máscaras acabam por cair, exibindo a verdadeira face que até então ocultavam. E quando isto se dá, o que vem à tona é a essência de cada um de nós, os aspectos mais sombrios, violentos ou intolerantes - dentre muitos outros - de nossa até então agradável personalidade.
Com relação ao espetáculo, Emílio de Mello impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. Enquanto a peça transcorre de uma forma, digamos, hipocritamente civilizada, os personagen agem em sintonia com essa hipocrisia. Mas quando as máscaras começam a descolar, então o encenador parte corajosamente para marcações que cada vez mais enveredam para o descontrole, a violência e a histeria. Sem dúvida, um trabalho brilhante, certamente um dos mais expressivos da atual temporada.
Quanto ao elenco, e mesmo correndo o risco de parecer (ou ser) monótono, torno a afirmar o que já disse tantas vezes e me parece óbvio: nosso país pode carecer de tudo, menos de intérpretes extraordinários. E aqui o quarteto formado por Orã Figueiredo, Deborah Evelyn, Paulo Betti e Julia Lemmertz confirma inteiramente essa minha inabalável crença. Valorizando ao máximo as principais características de seus personagens, os quatro intérpretes conferem especial grandeza à dificílima arte de representar, o que me leva a desejar que os sempre caprichosos deuses do teatro abençoem esta imperdível montagem e permitam que cumpra longa e merecidíssima temporada.
Na equipe técnica, destaco com o mesmo e irrestrito entusiasmo o trabalho de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Eloísa Ribeiro (tradução), Flavio Graff (cenografia), Renato Machado (iluminação), Marília Carneiro (figurinos), Marcelo Alonso Neves (música original e projeto de som) e a equipe de produção, formada por Cinthya Graber, José Carlos Furtado, Nacho Laviaguerre e Adriana Zonis.
DEUS DA CARNIFICINA - Texto de Yasmina Reza. Direção de Emílio de Mello.
Com Orã Figueiredo, Deborah Evelyn, Paulo Betti e Julia Lemmertz. Teatro
Maison de France. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.
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Uma comédia hábil e esperta
Jornal do Brasil
CRÍTICA / T E AT R O : DEUS DA CARNIFICINA
Um Elenco afinadíssimo transmite com ironia o desmonte da compostura do grupo - Macksen Luiz
A francesa Yasmina Reza, autora de Deus da carnificina, mantém os seus textos teatrais numa temperatura amena, na qual a intensidade dos graus que os tempera fica no limite do socialmente aceitável. Sua dramaturgia, que se reveste de embalagem chique, arranha temas de atualidade oportuna, que a autora capta e transforma em comédias agridoces, com infalível recepção mundial. Essa habilidade de Yasmina Reza em triturar , como se massageasse suas abordagens, garante comunicabilidade com plateias das mais diversas latitudes, capazes de se deixarem tocar por aquilo que lhes parece familiar e contemporâneo , e quase sempre bem aceitas pela maneira como são acondicionadas.
Em Deus da carnificina não é muito diferente. Ao reunir dois casais par a discutir a agressão sofrida pelo filho de um deles por parte do rebento do outro ,tudo parece, de início , muito civilizado . Afinal, os pares são representantes de uma classe média emergente, com profissões e ideologias que os projetam como detentores de verniz social, que se descobrirá voltado apenas par a consumo externo . A temperatura do encontro aumenta na medida em que cai a contenção e são ultrapassadas as regras da boa convivência. A briga infantil se transfere para disputa adulta, na qual o destempero verbal é apenas a exteriorização de impulsos muito pouco civilizados. A reunião, que a princípio foi organizada para chegar a um acordo sobre as consequências da refrega entre os garotos, se transforma em ringue de ferozes lutadores que expõem as mais recônditas entranhas da sua humanidade.
A aparência politicamente correta de apoio aos refugiados de Darfur ou as artimanhas para encobrir práticas heterodoxas da indústria farmacêutica se nivelam por igual banalidade com que se vendem equipamentos para banheiros ou se vomitam as frustrações de uma vida conjugal medíocre. Reza confina esse quarteto à sala onde se desenvolve o convívio, mas recorre ao banheiro com maior frequência que seria desejável se o encontro fosse um tanto mais amigável. O sentido de oportunidade da autora, que sabe criar ambientação de reconhecível atualidade e revestir os diálogos de sonoridade globalizada, permite que o texto se imponha como uma comédia hábil e esperta, que corteja a inteligência, embalada em pacote atraente.
A direção de Emílio de Mello soube traduzir o que o invólucro tem de melhor, o seu brilho externo. Para tanto, dispôs de elenco afinadíssimo, que foi capaz de transmitir com alguma ironia e intensidade dosada, o crescente desmonte da compostura do grupo. O cenário de Flávio Graff, simples e que foge do realismo, sugere a imagem de instalação plástica. Os figurinos de Marília Carneiro são perfeitamente adequados à classe social dos casais. A iluminação de Renato Machado complementa o visual. A fluente tradução de Eloisa Ribeiro e a música original de Marcelo Alonso Neves integram a cuidada montagem. Orã Figueiredo, ainda que carregue na rudeza de um dos maridos, o que acentua um pouco a relativa falta de plausibilidade do per sonagem, consegue boa resposta da plateia, que se deixa levar pelo humor solto do ator. Paulo Betti transmite com carga de cinismo e algum deboche os sentimentos que o advogado agarrado a inoportuno e insuportável celular provoca entre os demais participantes do tenso encontro. Deborah Evelyn adota um tom levemente crítico e provocativamente irritante em relação à ativista interessada em problemas africanos, que se transfigura em raivosa defensora dos maus modos. Julia Lemmertz tem momentos excepcionais, como aquele em que se dirige à plateia com forte máscara dramática, em seguida a uma cena em que domina a franqueza e o despudor da comédia.
Em Deus da carnificina não é muito diferente. Ao reunir dois casais par a discutir a agressão sofrida pelo filho de um deles por parte do rebento do outro ,tudo parece, de início , muito civilizado . Afinal, os pares são representantes de uma classe média emergente, com profissões e ideologias que os projetam como detentores de verniz social, que se descobrirá voltado apenas par a consumo externo . A temperatura do encontro aumenta na medida em que cai a contenção e são ultrapassadas as regras da boa convivência. A briga infantil se transfere para disputa adulta, na qual o destempero verbal é apenas a exteriorização de impulsos muito pouco civilizados. A reunião, que a princípio foi organizada para chegar a um acordo sobre as consequências da refrega entre os garotos, se transforma em ringue de ferozes lutadores que expõem as mais recônditas entranhas da sua humanidade.
A aparência politicamente correta de apoio aos refugiados de Darfur ou as artimanhas para encobrir práticas heterodoxas da indústria farmacêutica se nivelam por igual banalidade com que se vendem equipamentos para banheiros ou se vomitam as frustrações de uma vida conjugal medíocre. Reza confina esse quarteto à sala onde se desenvolve o convívio, mas recorre ao banheiro com maior frequência que seria desejável se o encontro fosse um tanto mais amigável. O sentido de oportunidade da autora, que sabe criar ambientação de reconhecível atualidade e revestir os diálogos de sonoridade globalizada, permite que o texto se imponha como uma comédia hábil e esperta, que corteja a inteligência, embalada em pacote atraente.
A direção de Emílio de Mello soube traduzir o que o invólucro tem de melhor, o seu brilho externo. Para tanto, dispôs de elenco afinadíssimo, que foi capaz de transmitir com alguma ironia e intensidade dosada, o crescente desmonte da compostura do grupo. O cenário de Flávio Graff, simples e que foge do realismo, sugere a imagem de instalação plástica. Os figurinos de Marília Carneiro são perfeitamente adequados à classe social dos casais. A iluminação de Renato Machado complementa o visual. A fluente tradução de Eloisa Ribeiro e a música original de Marcelo Alonso Neves integram a cuidada montagem. Orã Figueiredo, ainda que carregue na rudeza de um dos maridos, o que acentua um pouco a relativa falta de plausibilidade do per sonagem, consegue boa resposta da plateia, que se deixa levar pelo humor solto do ator. Paulo Betti transmite com carga de cinismo e algum deboche os sentimentos que o advogado agarrado a inoportuno e insuportável celular provoca entre os demais participantes do tenso encontro. Deborah Evelyn adota um tom levemente crítico e provocativamente irritante em relação à ativista interessada em problemas africanos, que se transfigura em raivosa defensora dos maus modos. Julia Lemmertz tem momentos excepcionais, como aquele em que se dirige à plateia com forte máscara dramática, em seguida a uma cena em que domina a franqueza e o despudor da comédia.
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Teatro: Deus da Carnificina
Edgar Olimpio de Souza - Revista Stravaganza
Na demolidora peça da premiada dramaturga francesa Yasmina Reza, dois casais se reúnem para supostamente discutir amigavelmente um episódio de agressividade envolvendo os filhos pequenos de cada um. São adultos, que estão ali para defendê-los segundo sua ótica enviesada. Deveriam, portanto, servir de exemplo para as crianças, mas perdem a compostura e se comportam de forma estupidamente infantil. O título, que pode espantar o público, trata desse retorno do ser humano à selvageria e funciona para ilustrar à perfeição uma trama onde pessoas dizem coisas terríveis um na cara do outro e promovem uma chacina verbal. Com aparência de comédia bulevar e conteúdo dramático, o espetáculo cumpriu bem-sucedida temporada carioca. O diretor Emílio de Mello não inventa firulas e deixa entrever o que se esconde debaixo do verniz de civilidade. Conta com um elenco sintonizado com a proposta, que nunca deixa o ritmo refugar. A montagem capta e expressa os diversos climas da ação e as nuances de cada personagem. Nada é desperdiçado, até mesmo falar ao celular rende momentos cômicos e constrangedores. Assim como uma sequência, cheia de significados, em que um dos presentes vomita sobre livros de arte. A autora revela-se hábil em radiografar a maldade e a crueldade camufladas em trejeitos e etiquetas burgueses, em iluminar seres humanos que gradativamente vão perdendo normas e convenções sociais e regridem à condição primitiva. São as máscaras que caem, sob o efeito de algumas doses de álcool, como a dos casais de Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?,de Edward Albee, ou a dos refinados representantes da burguesia que não conseguem sair da mansão em O Anjo Exterminador, clássico do cineasta espanhol Luis Buñuel. Os diálogos de Reza são bem construídos. Não só desenham as assimetrias profissionais e culturais entre os dois casais, como as diferenças dentro de suas próprias relações. O que se vê, embalado por uma comicidade sarcástica, com rompantes de catarse, são cenas que alternam insultos e ofensas dirigidos ao outro com lavagem de roupa suja conjugal. Tudo parece uma tensa luta de boxe, com oponentes que não trocam socos, mas verdades e neuroses reprimidas. Numa das cenas mais engraçadas da montagem, um personagem vira-se para sua mulher e pede para ela se acalmar. “Não vamos fazer como o outro casal, que está desabando à nossa frente”, implora, num alheamento ou cinismo perturbador.
O elenco entrega desempenhos inspirados. Paulo Betti interpreta um cínico e escorregadio advogado que tenta acobertar uma empresa farmacêutica acusada de comercializar remédio nocivo à saúde. Toda a hora o seu celular toca, obrigando-o a interromper a reunião – ou pugilato - em andamento. Em atuação de gala, o ator dá veracidade a uma figura que se sai melhor defendendo seus clientes que na educação do filho. Com desempenho luminoso, Orã Figueiredo encarna um atacadista meio bronco, aparentemente sensível, porém, capaz de abandonar na rua o hamster de estimação da filha. Deborah Evelyn esbanja talento como a mulher arrogante e obsessiva pelas causas sociais da África, que em determinados instantes parece inclinada para a agressão física. Júlia Lemmertez exercita matizes ao viver uma personagem infeliz no casamento, de estômago sensível, que se exaspera aos poucos. O cenário, de Flávio Graff, é uma mesa feita com peças coloridas de lego, metáfora do universo infantilizado em que afundam os casais e do jogo de construção e desconstrução ali exposto. No texto, os personagens parecem estar num beco sem saída e a encenação acha o tom exato entre a sátira e a farsa ao retratar a animalidade humana. Reza escancara no palco várias mentiras. Uma delas, a de que necessariamente os pais amam os seus filhos.
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Deus da Carnificina coloca a ideia do “politicamente correto” em cheque
Michel Fernandes, do Aplauso Brasil (michel@aplausobrasil.com)
Segundo o filósofo alemão Max Webber, somos éticos quando criamos uma expectativa e agimos de acordo com a mesma. Logo, podemos chamar os dois casais que compõem o quadro das personagens de Deus da Carnificina, em cartaz no Teatro Vivo, de seres desprovidos de quaisquer resquícios de ética, já que estão submersos num comportamento que vai da máscara da polidez social ao rasgo agressivo e primitivo.
Yasmina Reza, autora francesa de Arte, Um Homem Inesperado e Três Versões da Vida, entre outras, re-afirma sua extraordinária habilidade em urdir palavras que preenchem um enredo, aparentemente, singelo: dois casais se encontram para resolver um problema ocorrido na escola de ambos os filhos – uma agressão física que custou dois dentes de um dos garotos. Os pais da vítima recebem os pais do agressor para que juntos decidam a atitude que devem tomar.
Num primeiro momento, as tintas pasteis adequadas ao estilo “politicamente correto”, esperada pelos “cidadãos civilizados”, preenchem os pinceis desses pais. O documento que deverá registrar o ocorrido é lido e, feita apenas a alteração em uma palavra, é aprovada por todos. Ainda no tom da civilidade, salvo pequenas rusgas entre a mãe do agredido e o pai do agressor, os anfitriões oferecem café e uma guloseima que,segundo o dono da casa, é especialidade da esposa.Ao final do encontro, pelo menos os pais do agressor assim pensavam, os pais de ambos, acordam com a ideia de promover um encontro reconciliatório entre os garotos.
Entretanto, a solução pacífica que se sinalizava, toma rumos inesperados. Pequenos detalhes são o estopim para que o vulcão primitivo que habita todos os seres entre em erupção.
Em um de seus livros, o Dalai Lama conta uma curiosa história que pode ser aplicada aqui: em resumo, a história fala sobre um monge que decidiu se isolar na montanha para aprender a lidar com a raiva, no entanto, quando um pastor o inquiriu insistentemente sobre o que fazia lá, ele respondeu com o azedume da raiva que armazenou em seu coração. Assim o é com esses dois casais da classe média, escondem sua agressividade sob o manto das boas maneiras, contudo seu barril interior está repleto de pólvora e basta sutil chamuscada para haver a explosão.
Emílio de Mello, quem assina a direção da peça, moldou a encenação com simplicidade e clareza de objetivos. A direção é assertiva ao valorizar os intérpretes e as nuances de cada uma de suas falas. Deborah Evelyn, Júlia Lemmertz, Paulo Betti e Ora Figueiredo formam o quarteto afinado e equalizado de Deus da Carnificina.
Flávio Graff criou um cenário, ao mesmo tempo, simples e inventivo: uma mesa feita de peças de lego.
Marília Carneiro, responsável pelos figurinos, e Renato Machado, iluminação, caminham na senda da discrição, assim como todos os elementos externos.
Originalmente composta para o espetáculo, a trilha sonora de Marcelo Alonso Neves tem um movimento interessante no início da peça como se nos chamasse a um espaço ritualístico onde será contada uma história.
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Apesar do texto fraco, "Deus da Carnificina" é um bom espetáculo - Zero Hora
Flávio Mainieri escreve sobre a peça que esteve em cartaz no Porto Alegre Em Cena
Flávio Mainieri*Professor aposentado do Departamento de Arte Dramática da UFRGS
Yasmina Reza é uma dramaturga francesa com incursões pelo romance, pela direção de seus textos e, às vezes, até atua, tendo, também, dirigido um filme. Suas peças são montadas nos teatros privados com grande sucesso de público. Falando-se em teatro privado, na França, são os teatros que não perdem de vista o lucro, satisfazendo desta forma o que a indústria cultural identifica como a vontade/gosto do público. Aproveitando a vinda de Mãe Coragem e seus Filhos, poderia afirmar que, talvez, Brecht não gostasse muito de estar junto de Yasmina, nem eu.
Reafirmo algumas de minhas observações no texto publicado neste jornal, em junho, a propósito do filme Deus da Carnificina, de Roman Polanski (baseado na peça homônima que teve uma montagem apresentada terça e quarta no Porto Alegre Em Cena). A peça exibe alguns clichês da dramaturgia contemporânea, a saber: o texto de Yasmina é enxuto, alguns assuntos são apenas citados e não contribuem para o desenvolvimento da fábula, aliás, a fábula pouco importa (o que é uma forte característica do teatro contemporâneo).
Quando digo citados, é porque as informações são passadas pelas palavras dos personagens, nada acrescentando, a não ser para situar os personagens no mundo atual: Veronica preocupa-se com a fome na África; Alan é advogado que defende um laboratório farmacêutico inidôneo; Anete preocupa-se com a morte do hamster, assuntos que não são os temas da peça, mas mostram explicitamente ao leitor/espectador que a autora está atenta ao que se passa no mundo e é uma leitora de manchetes dos jornais.
Os personagens dramáticos não necessitam verbalizar quem são, mas agem e mostram, suas ações levam o espectador a conhecer quem são estes seres ficcionais que estão vivenciando determinadas situações na cena. No texto de Yasmina, acontece o contrário: há a necessidade da palavra. Outro elemento de modernidade (?) se encontra num dos temas da peça: a incomunicabilidade, quando as palavras são um veículo de mal-entendidos. Tema recorrente do teatro de Beckett, de Ionesco, dos filmes de Antonioni, das décadas de 1960, 70, do século passado.
Em Deus da Carnificina, a tensão entre os personagens aumenta e revela a crise conjugal e das relações interpessoais enfrentada pelos dois casais, comprovando que o homem, na sua natureza, carrega a violência. Em sua essência, o homem é um ser violento, um nada é suficiente para que o selvagem que habita em nós se manifeste desmanchando o verniz civilizado – esse é o verdadeiro tema da peça.
Não posso deixar de fazer referência, como contraponto, a um dos ensinamentos do mestre Brecht, que deu um novo rumo ao teatro francês ao apresentar Mãe Coragem em Paris, em 1954: o teatro deve mostrar o mundo como possível de modificação, e o homem não deve ser mostrado como algo acabado – o homem não é, ele se torna e se transforma.
Centrei meu comentário no texto, mostrando o meu desacordo com esse gênero de dramaturgia, o que não me impediu de admirar o espetáculo. Um diretor competente (Emílio de Mello); ótimos figurinos, cenário, iluminação, todos os elementos funcionando perfeitamente; elenco excelente, capaz de provocar risadas com um simples gesto, mostrando pleno domínio da cena e do tempo da comédia, permitem um divertimento garantido e despertam admiração pela competência no executar.
A plateia gostou, o gosto do público foi satisfeito, mas eu lamento que o excelente trabalho não seja utilizado na encenação de um texto mais consistente.
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CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES (da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
Ao som de "um peu d'opulance", tem início O DEUS DA CARNIFICINA, de Yasmina Reza, a peça mais procurada do 19º Porto Alegre em Cena, junto com o Berliner Ensemble, em sua primeira visita ao Brasil para apresentar a peça de Bertold Brecht, "Mãe Coragem". Os dois espetáculos, nem é preciso dizer, foram sucesso. Acompanhamos o deslocamento dos atores brasileiros que trabalham na peça de Yasmina Reza, do Rio de Janeiro até Porto Alegre, não só como crítica convidada, mas também como Organizadora do livro de poemas (e teatro), do pai de Julia Lemmertz, o ator Linneu Dias. Julia é uma das atrizes do LE DIEU DU CARNAGE (do original francês). A outra atriz do elenco é Deborah Evelyn. O Deus da carnificina é o homem, o ser humano.
Mas agora comecemos pela verdadeira Via Crucis que é sair do Rio de Janeiro em um vôo da Gol, a Companhia de Aviação que mais atrasa, no Brasil. Para nós, dessa vez, foram três horas de atraso até conseguirmos chegar a Porto Alegre! Pela algaravia dos fãs, pedindo para serem fotografados ao lado das duas atrizes, suspeitamos que o atraso de vôo era caso pensado da Companhia, para dar uma alegria extra aos passageiros, que tiraram fotos, à vontade, das atrizes! Depois, ficamos sabendo que os atrasos são uma constante na Gol, o que nos fez preferir a Azul, em nosso retorno ao Rio, e ao aeroporto Santos Dumont, em detrimento do Tom Jobim, cujas condições são inviáveis.
Mas passemos ao espetáculo. Não sem antes comemorar a beleza do neoclássico Theatro São Pedro, de Porto Alegre, uma jóia da arquitetura do final do século XIX, com capacidade para 700 pessoas (ficou lotado e com cadeiras extras, no espetáculo carioca). A primorosa arquitetura é muito bem protegida pela diretora Eva Sopher, responsável pela restauração do teatro. No saguão podia-se encontrar a mesa com os livros do ator Linneu Dias, URBIA I e II, no qual encontramos críticas de cinema e o monólogo "Minh'Alma, Alma Minha", uma biografia poética do Linneu. A "banca", como o elenco da peça e os admiradores a chamavam, atraiu público e foi uma excelente demonstração do apego à cultura, feita pelos gaúchos.
No início de peça, embalados por "pour un peu d'oppulance" (a trilha sonora é de Marcelo Alonso Neves), os dois personagens-anfitriões, Verônica (Deborah Evelyn) e Michel (Orã Figueiredo), arrumam a sala de sua casa para receber o casal com quem terão uma delicada conversa sobre o comportamento de seus "guris" adolescentes. Durante os preparativos para receber as visitas, o diretor Emílio de Mello lança os primeiros dados, através do gestual estabelecido para os atores (trabalho compartilhado por Valéria Campos e sua Técnica de Alexander), dando as dicas para o público avaliar o caráter e o relacionamento do casal. Enquanto Verônica, a esposa delicada, prepara o ambiente doméstico de maneira cuidadosa, o não menos dedicado marido Michel vai revelando, pela sua movimentação, o homem rústico que é (note-se a maneira pela qual ele molha os dedos para virar as páginas dos livros de arte da esposa, são detalhes que constroem os personagens).
O interessante, nesta direção de Emílio de Mello, é o que ele vai construindo, ajudado pelo excelente texto de Yasmina Rezza, os planos de uma narrativa cruel: o do público, que classifica as ações dos casais como "excentricidades", e o outro plano, o da verdadeira natureza do espetáculo, a complexidade do humano e a sua desagregação enquanto ser civilizado. Há uma tristeza profunda pairando sobre "a comédia". O subtítulo, "uma comédia irresponsável" é dado, imagino, para atenuar os acontecimentos.
E os "acontecimentos" se sucedem, estabelecendo o jogo de cena. O público se mobiliza, assistindo ao embate dos personagens e a dedicação dos atores: temos Paulo Betti, como Alain, o advogado sem escrúpulos; Deborah Evelyn é Verônica, a pesquisadora de mundos exóticos (estabelecendo o eterno complexo de culpa do mundo civilizado); Annette (Julia Lemmertz), é a implacável defensora dos deslizes de seu filho agressor, e crítica feroz do mundo que a cerca; Michel (Orã Figueiredo), o macho que conhece muito bem os seus limites, e teme ultrapassá-los.
Mas não se pode esquematizar os personagens, neste embate tão contemporâneo. A peça é uma sucessão de fatos que acrescentam dados ao perfil ocidental: e é aí que está a maestria da autora iraniana nascida em Paris. Yasmina Reza trafega por assuntos os mais variados, e a todos aborda com profundidade. A autora atinge o ponto preciso dessa profundidade quando presenteia Alain com a melhor frase da peça (o furor do personagem é interrompido, constantemente, pelos seus parceiros), quando Alain se refere à mesquinhez dos problemas caseiros que estão tratando, se comparados à situação caótica do mundo, na qual crianças muito menores do que seus filhos, matam, indiscriminadamente outros seres humanos: um mundo onde as armas estão ao alcance de suas mãos, "onde deveriam estar os pães de uma padaria", acrescento eu).
Assisti diversas vezes a essa peça - e a cada apresentação - a frase de Paulo Betti (e a sua irônica interpretação, que lhe valeu uma indicação ao Prêmio Shell), está cada vez mais diluída. Essa frase, que lança um flash instantâneo sobre a carnificina atual. Até a palavra "carnificina" presente na frase, o ponto chave da peça, fica diluída pelo ruído ambiente, o que é uma pena. Ela colocaria a platéia, sequiosa por divertimento, diante de nossa miséria incontestável. Dessa última vez que assisti LE DIEU DU CARNAGE, a experiência foi interessante. Paulo Betti entrou na frase em um tom discursivo, dominante, o que impressionou o público. Para quem pensava que estava assistindo a uma comédia, foi uma tomada de consciência. Pena que foi um instante efêmero. Mas talvez seja assim mesmo a reação do ser humano a uma tomada de consciência, efêmera, ele prefere cortá-la logo, cortar os assuntos inconvenientes.
E não há "assunto inconveniente" maior do que ver os cuidados excessivos do mundo ocidental com os seus pimpolhos (que, no caso, desfiguram uns aos outros em combates de rua), quando eles próprios (os adultos ocidentais) matam centenas de milhares de crianças, do mundo oriental, como se fossem poeira na areia. Além de considerar essa peça vital, diria essencial, folgo ao saber que ela está fazendo agora (já próximo às trezentas apresentações - estreou em 2010), o circuito do CEU, os Centros Educacionais Unificados de São Paulo, onde há alunos de todas as idades interessados em cultura, em teatro.
Além dos já mencionados técnicos que compuseram o espetáculo, temos Flávio Graff com o seu cenário marcante: a mesa dominando a cena, como peças de armar de brinquedo infantil; e a iluminação feérica, dimensionada por pequenos núcleos, de Renato Machado; os acertados figurinos de Marilia Carneiro. Parabéns para a encenação dessa peça. É muito bom ver bom teatro!
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CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES (da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
Ao som de "um peu d'opulance", tem início O DEUS DA CARNIFICINA, de Yasmina Reza, a peça mais procurada do 19º Porto Alegre em Cena, junto com o Berliner Ensemble, em sua primeira visita ao Brasil para apresentar a peça de Bertold Brecht, "Mãe Coragem". Os dois espetáculos, nem é preciso dizer, foram sucesso. Acompanhamos o deslocamento dos atores brasileiros que trabalham na peça de Yasmina Reza, do Rio de Janeiro até Porto Alegre, não só como crítica convidada, mas também como Organizadora do livro de poemas (e teatro), do pai de Julia Lemmertz, o ator Linneu Dias. Julia é uma das atrizes do LE DIEU DU CARNAGE (do original francês). A outra atriz do elenco é Deborah Evelyn. O Deus da carnificina é o homem, o ser humano.
Mas agora comecemos pela verdadeira Via Crucis que é sair do Rio de Janeiro em um vôo da Gol, a Companhia de Aviação que mais atrasa, no Brasil. Para nós, dessa vez, foram três horas de atraso até conseguirmos chegar a Porto Alegre! Pela algaravia dos fãs, pedindo para serem fotografados ao lado das duas atrizes, suspeitamos que o atraso de vôo era caso pensado da Companhia, para dar uma alegria extra aos passageiros, que tiraram fotos, à vontade, das atrizes! Depois, ficamos sabendo que os atrasos são uma constante na Gol, o que nos fez preferir a Azul, em nosso retorno ao Rio, e ao aeroporto Santos Dumont, em detrimento do Tom Jobim, cujas condições são inviáveis.
Mas passemos ao espetáculo. Não sem antes comemorar a beleza do neoclássico Theatro São Pedro, de Porto Alegre, uma jóia da arquitetura do final do século XIX, com capacidade para 700 pessoas (ficou lotado e com cadeiras extras, no espetáculo carioca). A primorosa arquitetura é muito bem protegida pela diretora Eva Sopher, responsável pela restauração do teatro. No saguão podia-se encontrar a mesa com os livros do ator Linneu Dias, URBIA I e II, no qual encontramos críticas de cinema e o monólogo "Minh'Alma, Alma Minha", uma biografia poética do Linneu. A "banca", como o elenco da peça e os admiradores a chamavam, atraiu público e foi uma excelente demonstração do apego à cultura, feita pelos gaúchos.
No início de peça, embalados por "pour un peu d'oppulance" (a trilha sonora é de Marcelo Alonso Neves), os dois personagens-anfitriões, Verônica (Deborah Evelyn) e Michel (Orã Figueiredo), arrumam a sala de sua casa para receber o casal com quem terão uma delicada conversa sobre o comportamento de seus "guris" adolescentes. Durante os preparativos para receber as visitas, o diretor Emílio de Mello lança os primeiros dados, através do gestual estabelecido para os atores (trabalho compartilhado por Valéria Campos e sua Técnica de Alexander), dando as dicas para o público avaliar o caráter e o relacionamento do casal. Enquanto Verônica, a esposa delicada, prepara o ambiente doméstico de maneira cuidadosa, o não menos dedicado marido Michel vai revelando, pela sua movimentação, o homem rústico que é (note-se a maneira pela qual ele molha os dedos para virar as páginas dos livros de arte da esposa, são detalhes que constroem os personagens).
O interessante, nesta direção de Emílio de Mello, é o que ele vai construindo, ajudado pelo excelente texto de Yasmina Rezza, os planos de uma narrativa cruel: o do público, que classifica as ações dos casais como "excentricidades", e o outro plano, o da verdadeira natureza do espetáculo, a complexidade do humano e a sua desagregação enquanto ser civilizado. Há uma tristeza profunda pairando sobre "a comédia". O subtítulo, "uma comédia irresponsável" é dado, imagino, para atenuar os acontecimentos.
E os "acontecimentos" se sucedem, estabelecendo o jogo de cena. O público se mobiliza, assistindo ao embate dos personagens e a dedicação dos atores: temos Paulo Betti, como Alain, o advogado sem escrúpulos; Deborah Evelyn é Verônica, a pesquisadora de mundos exóticos (estabelecendo o eterno complexo de culpa do mundo civilizado); Annette (Julia Lemmertz), é a implacável defensora dos deslizes de seu filho agressor, e crítica feroz do mundo que a cerca; Michel (Orã Figueiredo), o macho que conhece muito bem os seus limites, e teme ultrapassá-los.
Mas não se pode esquematizar os personagens, neste embate tão contemporâneo. A peça é uma sucessão de fatos que acrescentam dados ao perfil ocidental: e é aí que está a maestria da autora iraniana nascida em Paris. Yasmina Reza trafega por assuntos os mais variados, e a todos aborda com profundidade. A autora atinge o ponto preciso dessa profundidade quando presenteia Alain com a melhor frase da peça (o furor do personagem é interrompido, constantemente, pelos seus parceiros), quando Alain se refere à mesquinhez dos problemas caseiros que estão tratando, se comparados à situação caótica do mundo, na qual crianças muito menores do que seus filhos, matam, indiscriminadamente outros seres humanos: um mundo onde as armas estão ao alcance de suas mãos, "onde deveriam estar os pães de uma padaria", acrescento eu).
Assisti diversas vezes a essa peça - e a cada apresentação - a frase de Paulo Betti (e a sua irônica interpretação, que lhe valeu uma indicação ao Prêmio Shell), está cada vez mais diluída. Essa frase, que lança um flash instantâneo sobre a carnificina atual. Até a palavra "carnificina" presente na frase, o ponto chave da peça, fica diluída pelo ruído ambiente, o que é uma pena. Ela colocaria a platéia, sequiosa por divertimento, diante de nossa miséria incontestável. Dessa última vez que assisti LE DIEU DU CARNAGE, a experiência foi interessante. Paulo Betti entrou na frase em um tom discursivo, dominante, o que impressionou o público. Para quem pensava que estava assistindo a uma comédia, foi uma tomada de consciência. Pena que foi um instante efêmero. Mas talvez seja assim mesmo a reação do ser humano a uma tomada de consciência, efêmera, ele prefere cortá-la logo, cortar os assuntos inconvenientes.
E não há "assunto inconveniente" maior do que ver os cuidados excessivos do mundo ocidental com os seus pimpolhos (que, no caso, desfiguram uns aos outros em combates de rua), quando eles próprios (os adultos ocidentais) matam centenas de milhares de crianças, do mundo oriental, como se fossem poeira na areia. Além de considerar essa peça vital, diria essencial, folgo ao saber que ela está fazendo agora (já próximo às trezentas apresentações - estreou em 2010), o circuito do CEU, os Centros Educacionais Unificados de São Paulo, onde há alunos de todas as idades interessados em cultura, em teatro.
Além dos já mencionados técnicos que compuseram o espetáculo, temos Flávio Graff com o seu cenário marcante: a mesa dominando a cena, como peças de armar de brinquedo infantil; e a iluminação feérica, dimensionada por pequenos núcleos, de Renato Machado; os acertados figurinos de Marilia Carneiro. Parabéns para a encenação dessa peça. É muito bom ver bom teatro!
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